Início Notícias O país que somos e não queremos ver

O país que somos e não queremos ver

0

15/05/2017 06h59

E, pior, acreditamos, e acreditamos sem dar margem a questionamentos, que é possível aumentar a eficiência econômica desconsiderando a equidade social.

Valdemir Pires

O mapa da miséria nacional é uma imagem terrível. Desenhado não com base
na projeção territorial, mas no tamanho de cada Estado se for
considerada a proporção de sua população de pobres sobre a população
total, ele revela a insignificância do Brasil enquanto economia. Ele
mostra que temos sido incapazes de ocupar com um mínimo de inteligência
e decência a vastidão territorial sob nosso controle soberano. Estamos
devendo muito em termos de eficiência e de equidade. E, pior,
acreditamos, e acreditamos sem dar margem a questionamentos, que é
possível aumentar a eficiência econômica desconsiderando a equidade social.
Olhe: este mapa bem poderia ser comparado ao desenho de um menino negro,
de pernas finas, precisando projetar fortemente a cabeça para trás, a
fim de conseguir manter-se em pé contra o peso de uma barriga enorme,
consequência da esquistossomose avançada, contraída por falta de
saneamento básico na favela onde mora.
— Bem, com essa barriga, pode correr menos, e a polícia terá menos
trabalho para apanhá-lo – certamente dirão uns brasileiros de hoje, de
mentalidade enraizada em sabe-se lá que lodo antropológico.

— Que carga o Sul e o Sudeste têm que carregar!, constatarão outros
brasileiros de índole separatista-higienista (os racistas acima junto
com eles).

Eu olho este mapa e penso: Meu Deus! O que fizemos com o legado de
pensadores de estatura e fibra como Celso Furtado e Josué de Castro?
Este economista e este geógrafo chamaram a atenção para a absoluta
necessidade de integração regional com redução das desigualdades, para
que viéssemos a ser uma Nação capaz de almejar o desenvolvimento. Por
isso tornaram-se o que são: ícones do pensamento social
internacionalmente repeitados, dos poucos que temos, juntamente com
Paulo Freire, que dedicou-se a pensar sobre como a educação pode
libertar — mas não qualquer educação, não essa que estamos praticando:
cara, ineficiente e incapaz de, no seu nível superior, produzir gente
como Celso Furtado e Josué de Castro; quando muito, traz à luz um ou
outro economista neoliberal falastrão, incapaz de se comunicar senão em
inglês (com sotaque americano).

Eu olho este mapa e fico imensamente triste, por saber que qualquer
esforço para modificá-lo esbarra e esbarrará, por muito tempo ainda, em
preconceitos não de classe (embora em parte também), mas de grupos
sociais de mentalidade retrógrada, que se comprazem em sustentar
preconceitos e mesquinharias a troco de manter acesso a um padrão de
renda que lhes parece alto, mas é ridiculamente baixo para os padrões
internacionais; isso sem se dar conta que este padrão não irá subir
enquanto o país não for economicamente explorado de modo inclusivo, de
maneira a aproveitar sua gente — o que só será possível quando nenhum
brasileiro for, mais, considerado menos do que gente, como hoje é
considerado. GENTE, essa massa de ossos, músculos, vísceras, sangue e
cérebro, digna de existir e com potencial para brilhar, cada qual a seu
modo, desde que possa comer, beber, vestir, morar, trabalhar com um
salário decente. POPULAÇÃO: um tantão de gente — e não uma massa de
imprestáveis, com que a elite ilustrada (“gente fina, elegante”,
sincera?tem que conviver, achando que a “carrega nas costas”, feito a
fatia verde do mapa, carregando o resto do país.

Eu olho este mapa e fico, aqui, achando que estamos produzindo mais uma
ou duas gerações de brasileiros incapazes de pensar como Celso Furtado e
Josué de Castro. Pessoas, primeiro, não habilitadas para ler com a
sensibilidade do leitor que busca respostas para o mundo ao seu redor e,
segundo, rançosamente preconceituosas (com sua meritocracia postiça), a
ponto de se recusar à abordagem de autores que se preocuparam com o que
eles acham resultado da falta de mentalidade empreendedora: a fome e a
miséria.

Eu olho este mapa e me bate o desespero de saber que estamos numa
trajetória acelerada para piorá-lo, com milhões de indivíduos aplaudindo
e outros milhões observando, paralisados, como se isso não tivesse nada
a ver com eles, no conforto de seus lares ou na desesperança de suas
histórias pessoais e/ou familiares.

colaboração de Valdemir Pires é professor do curso de Administração Pública da
Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara.

Sair da versão mobile