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Aborto é crime, Sr. Ministro?

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O atual ministro da Saúde afirmou que o aborto é crime no Brasil e minimizou as críticas feitas contra o novo guia de assistência sobre o tema lançado por sua pasta.

O erro de se afirmar com tanta ênfase a criminalidade da situação, colocando em evidência sua perspectiva pecaminoso-religiosa e carregando o debate de ideologia, faz com que sobre o tema não haja uma análise ponderada e necessária à realidade tanto médica quanto penal.


Em primeiro lugar, é preciso delimitar o tipo de aborto que é previsto como crime no direito brasileiro. Como se verá abaixo, dentre as espécies possíveis de aborto, sob a perspectiva penal, apenas um é considerado crime.

Para se compreender isto, deve-se ter em mente que há um conjunto de elementos que compõem um crime, qualquer crime. Sem um destes elementos, a conduta não pode configurar delito. Quais são tais elementos? São tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade.


O crime precisa ser típico, isto é, enquadrar-se na descrição da lei; precisa ser antijurídico, ou seja, a conduta não pode estar amparada na lei; e, por fim, deve ser culpável, vale dizer, ser reprovável da perspectiva do agente.

Quando a lei fala em excludente de ilicitude, ela quer exatamente dizer que dada conduta não pode ser crime porque falta o elemento da antijuridicidade, quer dizer, a lei em certo caso permite a prática da conduta e ela não pode ser considerada criminosa.

Exemplo clássico: matar alguém por legítima defesa. A morte ocorreu, há agente praticante da conduta, mas há uma “permissão” legal para esta situação, que é a defesa do próprio agente ou de terceiros. Assim, mesmo tendo ocorrido a morte, a conduta não se tipifica como homicídio e, portanto, não é homicídio.

Com relação ao aborto, sob aspecto legal, existem quatro modalidades: natural; necessário; sentimental e ilícito propriamente dito.

O natural é aquele que ocorre por circunstâncias biofisiológicas involuntárias à gestante, que, na maior parte dos casos, pretendia a continuidade da gravidez. Este caso por óbvio não tipifica crime.

Necessário é o aborto assim chamado quando praticado se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, a não ser com o sacrifício do feto. A interrupção da gravidez é realizada visando-se preservar a saúde da gestante, o que hoje implica em condições físicas e psicológicas. Um exemplo disto, dado por interpretação mais ampla da lei na ADPF 54, é o caso do chamado aborto do anencéfalo, cuja justificativa pode ser fundada em tal circunstância. Deste modo, o aborto necessário, denominado ainda terapêutico ou curativo, não configura crime por expressa previsão legal.

O aborto sentimental é aquele que pode ocorrer quando a gravidez tiver origem num ato de violência contra a mulher, vítima neste caso de crime contra sua dignidade sexual, configurado basicamente pelo estupro. A lei penal em consideração a integridade psicológica da mulher permite o aborto, dizendo que ele não é punível. Verifica-se ainda a ausência de antijuridicidade e o fato não é considerado criminoso. É possível também se considerar a justificativa quanto ao dolo, pois a motivação não é a interrupção isolada da gravidez, porém antes, a preservação da estrutura sentiment al da gestante, a qual não pode ser submetida, como regra, a um profundo esforço de manutenção de uma vida cuja origem é espúria e indesejável. O aborto sentimental recebe a denominação de humanitário, moral ou ético, em face de tentar diminuir os reflexos negativos da violência à recuperação da mulher. E não constitui crime.

O único tipo ilícito de aborto é aquele provocado pela gestante ou por terceiro, seja médico ou não, com ou sem consentimento, motivado por outra circunstância que não as acima tratadas. Criminoso é o aborto provocado sem finalidade terapêutica ou sentimental, sem visar proteção da vida física ou moral da gestante. Ele é gerado pela insegurança, pelo medo, pela irresponsabilidade, pela falta de informação e pela falta de apoio individual e social. Enfim, sua causa não é natural, terapêutica ou humanitária, mas de natureza socioeconômica.

A gestante, nesta situação, encontra-se isolada, sem amparo, sem perspectivas, sem horizontes, abandonada mesmo pelo companheiro que, em momentos anteriores, sob a proteção da intimidade, prometia-lhe a luz das mais distantes estrelas.

Neste caso, o aborto é praticado justamente por faltarem condições de atendimento à gestante e de amparo social a uma possível futura mãe.

Falta o que todos os governos falsamente dizem que pretendem suprir: atendimento médico e assistência social. Falta o respeito à cidadã, que, na condição de gestante, não tem suporte assistencial algum dos entes públicos, para poder decidir o que fazer de seu futuro, com uma nova vida em seu ventre.

Ausente está uma estrutura de formação que aponte horizontes para a mulher que foi abandonada em sua situação de gravidez. Falta amparo social para demonstrar que existem outros recursos e que o amanhã não será obscuro.

Falta vergonha do governo e da sociedade para estender a mão a quem efetivamente precisa de apoio, duas vidas em jogo num só corpo.

Cercada de todas as condições, a mulher teria efetiva liberdade para tomar decisões ponderadas. Aí haveria a possibilidade do exercício de uma escolha. Então essa mulher seria livre.

Mas a realidade é a do desamparo da qual já se sabe. O que esta realidade implica é, diante de sua implacável força, verificar se ela não configuraria em termos penais uma causa supralegal de excludente de ilicitude.

Seria uma causa de exclusão de ilicitude fundada numa questão social provocada pela desigualdade. A gestante cuja ausência de condições socioeconômicas a premissem ao desespero, teria assim um suporte legal caso viesse a praticar o aborto. É bastante polêmico, deve-se reconhecer, mas permitiria uma justiça mais equilibrada e teria, certamente, também um pano de fundo humanitário. Mas isso exigiria que principalmente um Ministro da Saúde tivesse uma visão mais humanista e menos totalitária.

Por João Ibaixe Jr – Advogado criminalista e ex-delegado de Polícia, é especialista em Direito Penal, pós-graduado em Ciências Sociais e Teoria Psicanalítica e mestre em Filosofia do Direito e do Estado.

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