Caro (a) leitor (a), imagine a seguinte situação hipotética: M vítima de estupro, ao invés de optar pelo aborto previsto em lei para o seu caso, prosseguindo na gestação, deseja amparar-se na chamada “entrega voluntária” prevista no Art. 19-A do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Designada a audiência obrigatória determinada pelo Art. 166, §1º, I, devidamente assistida por Defensor Público ou Advogado, na presença do Ministério Público, M confirma ao Juiz que deseja entregar a criança recém-nascida à adoção de terceiros devidamente habilitados na Vara da Infância.
Pois bem. M após manifestar livre e espontaneamente sua vontade assegurada em lei, concretizada a entrega voluntária da criança resultante do estupro sofrido, deixando o Fórum resolve ir a um banco, um supermercado, depois passar na casa de uma amiga de infância etc. No inicio da noite, ao finalmente chegar em casa, onde reside com seus pais e demais irmãos, toca a campainha e ao abrir a porta encontra a mesma criança, sua filha da gravidez resultante de estupro, que acabara de entregar na Vara da Infância à adoção, recostada no sofá envolta de brinquedos.
M questionando a todos o que significava a presença da menor que entregou à adoção na Vara da Infância de volta em sua casa, ouve de seus Pais o seguinte: “Exercemos nosso direito de preferência como Avós, como ‘família extensa’, como previsto no Art. 19-A, 3º e 4º, do ECA, e manifestamos ao Juiz nossa intenção de exercer a guarda de nosso neto”.
Imagine o que passa e passará pela cabeça de M ao saber que deverá conviver eternamente com a criança, concebida do estupro sofrido, dentro de sua própria casa e os conflitos familiares que eventualmente daí surgirão. Ou seja, nem o aborto legal, nem a entrega voluntária prevaleceu em atendimento ao direito maior de proteção da mulher vítima de estupro. No exemplo dado, a prevalência legal foi do direito dos avós de ter o neto sob a guarda judicial, independentemente da gravidez resultante de estupro da genitora e de sua malfadada entrega voluntária que não surtiu efeito nenhum.
Inacreditavelmente é o que está escrito na lei, no próprio ECA. Claro, pode-se fazer malabarismos interpretativos, garimpagem de doutrina e jurisprudência ou mesmo agarrar-se a relatórios psicossociais para se tentar extrair da lei o melhor sentido da norma, obter-se uma coerência das coisas. Mas, ubi lex voluit dixit, ubi noluit tacuit (“quando a lei quis determinou, sobre o que não quis, guardou silêncio”).
Ao perplexo, confira-se, in litteris: “Art. 19-A. A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude. (…) §3º A busca à família extensa, conforme definida nos termos do parágrafo único do art. 25 desta Lei, respeitará o prazo máximo de 90 (noventa) dias, prorrogável por igual período”.
Perceba-se que o ECA não distinção do modo e de que forma foi concebida a gravidez, se voluntária ou resultante de estupro. Mistura tudo num dispositivo só. Assim, o Art. 19-A, §3º, do ECA, abrange todo o tipo de gravidez, inclusive a resultante de estupro. Razão pela qual a “busca à família extensa” deverá ocorrer em todas as hipóteses, sem exceção.
E para piorar as coisas o Art. 25 e seu § único do ECA não delimitam com precisão até que grau o parente seja família extensa, ao contrário do que faz a legislação previdenciária, estatutária, administrativa, civil e penal. E de modo ainda mais bizarro o ECA não fala de graus para estabelecer o parâmetro do parentesco, mas, sim, usa a expressão “parentes próximos” (!). Ou seja, aquele cunhado da prima da tia dos churrascos dos domingos, aquela tia-avó da madrasta da mãe sempre presente no instagram ou a prima emprestada do interior que sempre visita a família nos feriados, ente outros, poderão também se habilitar à guarda da criança até então entregue voluntariamente pela mãe à Vara da Infância.
O Congresso Nacional precisa urgentemente debruçar-se sobre essa delicada questão. Ou prestigia a vontade livre e soberana da mulher vítima de violência sexual concretizada na entrega voluntária à fila de adoção da Vara da Infância, ou prestigia a manutenção da criança resultante de estupro no seio familiar a contragosto da vítima de estupro. Pelo menos deve o ECA restringir os pedidos de guarda aos parentes de 1º grau da vítima, sob pena de eterna indefinição da situação jurídica da criança e neutralização completa da vontade da vítima manifestada na entrega voluntária. Ainda, e se a decisão da família extensa importar em banimento moral, psicológico e físico da vítima, esta não deveria ser pensionada pelo desterro?
Penso que a melhor solução seria prestigiar sempre e sempre a vontade da vítima de estupro, respeitar sua decisão de entrega voluntária à adoção de terceiros habilitados na Vara da Infância. E jamais aumentar a dor e sofrimento da mulher vítima de violência sexual trazendo de volta a criança para o seio familiar, implicando muitas vezes em nova e grave violência psicológica a quem tanto necessita ser acalentada e amada pela família com primazia.
Por Carlos Eduardo Rios do Amaral – Defensor Público do Estado do Espírito Santo.