A cannabis medicinal já é utilizada no Brasil na terapêutica de mais de 20 doenças, mas, para o Conselho Federal de Medicina, ela só poderia ser aplicada no tratamento de portadores de epilepsias na infância e adolescência refratárias às terapias convencionais, aos pacientes com Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e do Complexo de Esclerose Tuberosa.
Esse é, em resumo, uma grande tentativa de retrocesso que a nova resolução do CFM representa.
É nítida a vontade do Conselho de tentar restringir o acesso à saúde e o esforço para ameaçar a autonomia médica – condição esta, aliás, assegurada pelo Código de Ética Médica da entidade. Somente esses dois fatos já tornaram esta resolução 2324 altamente questionável. Ocorre que o impedimento em si não é legal. O CFM pode aconselhar, mas não proibir o uso do canabidiol. A decisão é inconstitucional, como muitos juristas já alertaram. A Anvisa, inclusive, já comunicou que as regras para os fármacos continuam as mesmas.
Por isso, nesse momento, é importante deixar claro: a resolução não muda em nada o acesso ao tratamento à base de cannabis por pacientes, nem a prescrição por médicos. Saúde é um direito constitucional, e o bem-estar do paciente está resguardado por esse princípio básico.
O que acontece é que a resolução confunde. E muitos estão vendo este posicionamento como um obstáculo (mais um) para o acesso aos produtos de boa procedência. Eu a vejo como uma mola propulsora. Analisando todos os posicionamentos das entidades, associações, médicos prescritores, comunidade e pacientes nos últimos dias, não pude deixar de refletir sobre um exemplo vindo de fora.
No Canadá, onde o cultivo da cannabis medicinal legalizada já completa mais de duas décadas, o uso de tratamentos à base de canabidiol avançou ao longo dos anos. Em 2008, já havia comprovação médica de seus efeitos e demanda suficiente para que fosse instituída a figura dos plantadores designados, em complemento à produção para uso próprio.
Em 2014, porém, houve uma tentativa legal de frear esse processo. A repercussão foi tão negativa que o assunto foi parar nas mais altas esferas judiciárias do país. Diante da reação de médicos e pacientes, a Justiça canadense decidiu que a proibição da cannabis medicinal trazia danos evidentes para pessoas que por anos tiveram sua saúde controlada.
No mesmo ano, depois de uma forte movimentação da sociedade, uma nova deliberação ampliou o modelo existente, permitindo que empresas também pudessem atuar na oferta do medicamento. Ou seja, o que começou como uma tentativa de proibição, acabou sendo o pontapé inicial para que uma maior regulação fosse feita. O direito à saúde prevaleceu e o retrocesso – que muitos estavam apreensivos – não ocorreu.
Agora a história se repete no Brasil e impõe a mobilização de todos os que dependem do tratamento com a cannabis medicinal para viver com dignidade, qualidade de vida e ter uma vivência sem dor.
Só enquanto eu escrevia este texto, em apenas um dia, a mídia já havia noticiado que o Conselho Federal de Medicina pressionava a Anvisa para rever normas de venda dos fármacos e, poucas horas depois, a autarquia informou, por meio de seu site e redes sociais, que abrirá consulta pública sobre o assunto para a população. Nossa movimentação está funcionando. É hora de participar, não desistir e virar o jogo.
Por Dra. Mariana Maciel – médica, especialista em Medicina Canabinóide, membro da Society of Cannabis Clinicians,CEO da Thronus Medical – biofarmacêutica canadense focada no desenvolvimento de fármacos inovadores à base de cannabis – e educadora médica da Thronus Education.