O que Kate Middleton tem em comum com o brasileiríssimo arroz com feijão? Ou o que une vinho a comprimidos? As respostas estão reunidas em torno do impacto de comportamentos ao longo da cadeia de valor na reputação de cada um – e como que o fato de ter um “colchão” reputacional pode reduzir este impacto ao mínimo.
Vejamos a princesa. Cultivada pelo amor britânico à instituição monárquica, costuma ser a melhor garota-propaganda para estimular as vendas do vestuário com que brinda suas aparições públicas. Em março o uso de um acessório da Zara, um par de brincos com custo aproximado de R$ 100, fez o produto desaparecer no e-commerce da marca espanhola algumas horas depois de aparecer no visual de Kate.
Em contrapartida, a demonstração de despojamento trouxe críticas pelo estímulo à fast fashion, tendência de moda descartável com graves consequências ambientais, e resvalou em questões como a exploração de trabalho infantil, identificado em 2016 na Turquia envolvendo refugiados sírios, e até no Brasil, onde processo contra a marca incluiu também trabalho análogo ao da escravidão.
Isso, claro, não significa que a princesa apoie a destruição do ambiente ou da degradação humana. Muito menos que tenha deixado de ser admirada pelos britânicos, já que sua aura institucional é suficiente para manter a reputação em alta.
Mas os processos estavam ali, impressos em sua cadeia de valor. Aliás, apesar da responsabilização legal, não é possível afirmar que a Zara seja a favor da exploração de criancinhas, que ocorreu, de fato, em oficinas fornecedoras da marca. E outros valores impressos em sua reputação mantiveram os negócios em alta.
Entender com mais profundidade o comportamento de sua cadeia de valor, incluindo fornecedores de serviços e produtos, é uma etapa delicada no percurso da boa reputação. O processo não é fácil e nem sempre passível de identificar e administrar sutilezas que podem detonar uma crise reputacional. Entretanto, a construção contínua de prestígio junto aos diversos públicos pode reduzir a ferida frente ao imponderável, se e quando surgir.
Veja o caso do arroz. Este ano, o resgate de trabalhadores em condições análogas à escravidão em Uruguaiana (RS) colocou no palco a Basf, que passou a ser investigada por manter contrato de fornecimento de sementes com as fazendas fiscalizadas – neste caso, a empresa tomou a dianteira de vir a público divulgar o encerramento dos contratos e procurar as autoridades para contribuir com a resolução do caso, antes que a coisa piorasse e tomasse dimensão capaz de abalar a reputação secular da companhia.
A questão do trabalho análogo à escravidão de grande monta tomou as manchetes este ano com os escravos do vinho. Também no Rio Grande do Sul, as vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton se comprometeram a pagar R$ 7 milhões em indenizações e Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por terem contratado uma empresa para fornecimento de mão de obra terceirizada, a Fênix, que mantinha trabalhadores em condições degradantes. Embora o caso não tenha repercutido diretamente nas compras pelas redes varejistas, um consumidor bem informado pode ter tido dúvidas na frente da gôndola ao se deparar com as marcas.
Em São Paulo (SP), outra investigação de trabalho escravo secundou o sucesso do festival musical Lollapalooza, com a T4F, responsável pelo evento, e Yellow Stripe, que opera os bares do festival, notificadas depois de fiscais do trabalho identificarem trabalhadores desta última obrigados a dormir junto aos engradados de bebidas, supostamente por segurança. Em resposta, a T4F anunciou rescisão de contrato com a Yellow Stripe e explicou contar com mais de 9 mil trabalhadores diretamente no local do evento, com mais de 170 prestadoras de serviços. Ou seja, na prática, virtualmente impossível gerir com precisão essa cadeia gigantesca. De novo, vale a questão do saldo reputacional: uma vez sólido o suficiente, é capaz de criar uma espécie de barreira contra o prejuízo à reputação.
A questão é que basta uma componente da cadeia fazer alguma besteira para associar a marca principal a algum mal feito. A mesma dinâmica fez com que a farmacêutica Libbs fosse condenada a pagar R$ 1,2 milhão pela morte de Ricardo Boechat. Não que um de seus medicamentos tenha envenenado o jornalista. Mas a empresa foi responsabilizada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo pela falta de segurança no transporte do jornalista. De novo, o meio de transporte empregado, um helicóptero cuja queda causou o óbito dos ocupantes, não era da empresa. A farmacêutica, que pode recorrer da decisão, alegou que o transporte era responsabilidade da organizadora do evento, Zum Brasil. Esta, por sua vez, explicou ter contratado a empresa RQ, do piloto Ricardo Quatrucci, falecido no acidente provocado por falta de manutenção da aeronave.
Acidentes acontecem. Mas as precauções para minimizar seu impacto reputacional devem ser embasadas em instrumentos para avaliar a reputação da empresa, localizar vulnerabilidades e propor, quando for o caso, medidas corretivas. Muitas vezes vale mais até a detecção de pontos positivos não claramente percebidos que podem se transformar em oportunidades e ajudar a enriquecer a “poupança” de reputação necessária para enfrentar acidentes. Afinal, eles são, por natureza, inevitáveis.
Por José Carlos Stabel – Jornalista, Publicitário, especialista em reputação de marca e sócio diretor da Percepta Marketing e Comportamento.