Qual era o rosto indígena da Amazônia que virava cinzas pela ação humana? A Igreja buscava compreender, enquanto o mundo noticiava os incêndios. As vozes da floresta ecoaram, mas foi preciso deixar os estereótipos de lado para conhecer a diversidade daqueles que não são mais como os que estavam por aqui, em 1500, quando o Brasil foi encontrado.
Em uma manhã de setembro de 2019, toquei, pela primeira vez, o território sagrado dos povos originários, em São Gabriel da Cachoeira (AM), a cidade mais indígena do país, na área mais preservada da Amazônia brasileira. Ali compreendi que os saberes tradicionais, passados por gerações, mantêm a floresta em pé. Conhecimento esse que deveria ser protegido, também por nós, kara’ïwas (homem branco).
A paisagem exuberante e sua cultura peculiar encantam! Em meio à floresta, vilarejos de casas de madeira e animais silvestres criados como domésticos. Cada família tem seu lar e o trabalho vem do cultivo da terra. A comida é feita na panela, mas no fogão a lenha. Sementes, penas e cascas se transformam em artesanato. A cultura indígena ensina o reaproveitamento integral daquilo que a natureza oferece.
Na área urbana, construções de concreto e rostos parecidos, como se fossem parentes entre si. Havia farmácia, padaria, mercadinho, agência bancária, muitas lojas de roupas e utensílios, um pequeno hotel e a igreja às margens do Rio Negro. O único hospital, administrado pelo Exército, adaptou a medicina do branco para atender os indígenas, mas não há estrutura para casos urgentes. Em situações mais graves, os pacientes são transferidos para a capital, Manaus, que fica a três dias de barco ou duas horas de voo.
O sinal de telefonia é precário. Os mais jovens gostam de hip-hop e street-dance. Há muitos indígenas nascidos na cidade que não aprenderam a língua de seus antepassados. Português é o idioma predominante, embora o município de 45 mil habitantes tenha outras quatro línguas indígenas oficiais. As 23 etnias e seus dialetos revelam a diversidade e riqueza cultural dos povos.
A alfabetização é feita na língua local, o português é aprendido como outro idioma. Alguns alunos usavam uniformes, outros estavam de pés no chão, o professor indígena ensinava sem camisa.
“Purãga Pesika” é o cumprimento de boas-vindas, na língua-geral nheengatu. ‘Kwekatú reté’ (obrigada) é a resposta. A recepção indígena aos visitantes é com músicas e danças. Eles não querem as terras exploradas, desejam construir um futuro sustentável com o que é deles por direito. Há uma tristeza na fala quando se referem à destruição da floresta. Degradar a terra não está na essência dos povos originários.
A voadeira, uma pequena embarcação, é o principal meio de transporte. Há lugares tão distantes dentro da mesma localidade que se levam dois dias para chegar. Esse é um dos desafios da igreja local, que tenta passar da visita à permanência. A evangelização, em meio às diferenças culturais, tem um longo caminho a percorrer. É preciso vencer as barreiras não-visíveis para despertar novas vocações autóctones. Há muitos que ainda precisam ser evangelizados. Há também indígenas católicos, batizados, à espera da presença da igreja.
O respeito às diferenças, a sabedoria ancestral e a relação harmoniosa com a criação encontram sentido quando compreendemos que 19 de abril não é um dia de celebração, mas de luta e resistência. Palavra tem significado e vida. Indígena não quer ser chamado de índio. A troca do nome da Funai para Fundação Nacional dos Povos Indígenas e a criação de um Ministério que os representem, trouxeram mais inclusão e valorização da diversidade de cada povo descendente dos primeiros habitantes desta terra.
Os povos originários querem reescrever a própria história, com a dignidade e o respeito que merecem. O rosto amazônico da Igreja se revela na sacralidade que não pode ser mudada, mas adaptada à compreensão de todos.
Por Elaine Santos – repórter do Telejornal Canção Nova Notícias.